quinta-feira, 16 de setembro de 2010





Doçurinha
Apesar de sua doçura ultrapassar sem nenhuma dó sua estatura, o doçurinha foi um grande amor.
Um dia, de madrugada, liguei pra ele. “Eu te amo porque existem poucas pessoas tão boas quantos você no mundo”. E ele respondeu: “não! Existem outras tantas, eu vou te mostrar!”. O doçurinha não só era a pessoa mais doce e boa do mundo, como ainda vivia se predispondo a me ensinar a viver.
Nos conhecemos numa festa. Numa roda de amigos. Ele, ao lado da mulher com a qual copulava quase que semanalmente, fixou os olhos esbugalhados em mim e começou a destilar sua doçura. As palavras saiam cheias de mel direcionadas a mim mas acertavam em cheio o pobre coração da moça bonita ao lado dele. Um clima sem graça se instaurava entre as pessoas. “É isso mesmo? Ele está cantando outra mulher na frente da mulher que trepa com ele?”. A roda esvaziou. Até eu sai da roda. Até a mulher ferida saiu da roda. Sobrou ele, sorrindo como se nada tivesse feito. Até porque, pobre rapaz tão distraído, puro e doce: ele nunca fazia nada! A maldade estava na mente dos outros. Ele apenas havia, como era de seu feitio, sido simpático, educado e fazedor de amigos. Sempre muito culto, sabido, opinado e doce. A moça provavelmente chorou, como eu, sem saber, faria tantas vezes num futuro não muito distante daquele dia. Mas isso era a loucura típica das moças e as histórias apressadas que elas inventam. O doçurinha, impune por sua inteligência quase tímida, continuava aquele moço, aquele chuchuzinho de ser, aquele que perdoamos ao dizer: “é uma figura!”.
Tempos depois, mais doce do que nunca, doçurinha mudou de país. Foi destilar seu mel e seu açúcar em outras bandas. Mas moço fofo que é, quis manter contato comigo. O que me fez sentir muito especial. Pois vejam, mesmo distante, ele passou a me escrever quase que diariamente. Sempre elogiando do desenho do meu dedão do pé até a última sinapse proferida de meus neurônios. “Nunca vi moça mais inteligente e bonita”. Eu estava há exatos sete meses sem olhar para o lado, fiel ao doçurinha que me dizia “e aí, quando você vier morar comigo” e tudo seguia bem. Ou quase.
O problema do doçurinha nunca foi sua generosidade, hombridade ou caráter. Quanto a todas essas coisas, tratava-se de exemplar masculino impecável. Seu único defeito era o celular. O aparelho muito velho e decadente, acho que um Iphone 4, nunca, jamais, em hipótese alguma, funcionava a noite. Doçurinha então me explicou que, o fato dele me ligar 56 vezes por dia e dizer coisas como “eu acho que você é a mulher da minha vida” e outras tantas como “quando tivermos nossos filhos” não significam que nós estávamos juntos depois das 8 da noite. Só durante a tarde, quando o peso de morar longe de sua família e dos amigos pesava. Entende? E ele disse isso, meio que chorando, meio que sofrendo, meio que pedindo perdão por me usar. Sempre tão sincero e honesto e angustiado. Sempre doce, como era doce o doçurinha. E eu, claro, compreendi. E ainda agradeci. E ainda me desculpei.
Tinha uma moça que ele apelidou carinhosamente de “simples”. Ela fazia bacalhoadas para ele. Uma moça que não era assim “perfeita como você” e que, ele dizia, “não cheira bem como você”, mas era o que dava pra ter lá longe, entende? Porque doçurinha, apesar de toda a sua evolução enquanto ser humano, tinha um pênis e tal. E precisava de moças e tal. Fora isso, moço com um coração antigo, doçurinha não sabia respirar sem um ombro feminino que se curvasse pra abrandar toda a sua angústia existencial. Então, mocinhas ao seu lado eram importantes para que ele não sucumbisse à dor da vida na Terra. Mas ele sofria, a voz sempre “diminutivando” as palavras ao final das frases. E seus e-mails, tão bonitos, que sempre terminavam com “e saiba que eu sofro com isso mais do que você”. E então, doçurinha podia sim ter uma namorada lá e me manter sonhando aqui com suas lindas frases, lindas músicas e lindos desejos. Por que não? E podia manter contato com mais umas três ex namoradas. Por que não? Quem rega as plantinhas sempre pode fugir para um imenso jardim encantado. E quanto mais plantas, mais sombra e ar puro. Ah, doçurinha, um homem romântico! E como era honesto em sua desonestidade!
Mas mesmo mantendo nós duas em sua doce vida, doçurinha foi visitar um amigo na Rússia. E, poxa, Tati, você não sabe, minha amada! Mas as moças aqui, poxa, são tão lindas e dadivosas. E assim, doçurinha desligou seu celular por quatro longos e tenebrosos dias. E eu, cagando nove vezes ao dia e vomitando outras duas, o perdoei ao final do seu turismo sexual. Afinal, poxa, ele nem tem trinta anos ainda. Tem que conhecer pessoas, fazer amor, amar. Tem que viver. Ah, doçurinha! Viva, meu amor! Não tem problema. Eu cagar e vomitar cinco vezes ao dia de tanto que dói é problema meu. Vamos focar na sua doce felicidade!
Para minha grande alegria, um belo dia, ele anunciou: “Estou indo para São Paulo SÓ por sua causa”. Eram dez dias na presença da alma mais doce de todas e EXCLUSIVAMENTE para mim. Ele traria o violão e os livros e tantas sabedorias e piadas. E faríamos amor o tempo todo. E ficaríamos finalmente juntos. Afinal, a bacalhau, as matrioskas e sabe-se lá mais o quê, eram apenas distrações para que, doçurinha, não sucumbisse ao enorme amor que sentia por mim. Combinamos que iríamos finalmente tentar e, se tudo desse certo, eu talvez iria pra longe com ele. E tudo seria lindo.
No primeiro dia, logo cedo, doçurinha pulou da cama e tomou um banho longo e muito perfumado. Cantou. Estaria ele feliz porque tivemos uma longa e apaixonada noite de sexo selvagem? Secou o cabelo com meu secador, de modo a deixar sua franja muito bonita. Exagerou no perfume. Tudo isso só poderia ser pra mim. Mas não era. Doçurinha ia almoçar com alguns amigos e voltaria a tempo de irmos ao cinema. “Umas quatro da tarde tô aqui”, ele disse. Mas, pobre e perdido rapaz, foi aparecer em minha casa às duas da manhã do dia seguinte. Pálido, choroso, descabelado. Eu, no terceiro Rivotril com água com açúcar, cinco quilos mais magra pela ânsia de vômito e assada de tanto cagar, fiz o quê? Ah, gente, mas era o doçurinha, certo? Perdoei. Ele, como bom moço romântico e doce e perdido e jovial e vitimado pelos mistérios do mundo e da carne, tinha tido mais uma de suas tantas e recorrentes recaídas pela moça paulistana que ele, sempre docemente, havia apelidado de “sonsa”. Uma ex namorada inesquecível. Ele dizia “é meio besta, é meio nada, é sonsa, é sem sal tadinha, não chega aos seus pés, mas…mas…ela fica quietinha daquele jeito burrinha e me enche de paz”. Ele era moço romântico, antigo, quase caipira. Quem não perdoa alguém que sofre tanto pela confusão da vida?
Portas não se fechavam para doçurinha, ainda que tantas abrissem. Pobre criança doce, ainda não havia aprendido que ser adulto é justamente suportar o peso das escolhas e perder amores para poder ter outros. Doçurinha, mel puro, queria tudo, tinha muito açúcar para dar e receber. E, poxa, ele conseguia fazer com que todo mundo não só entendesse como respeitasse isso. E ainda pedisse desculpa. Tem razão, doçurinha. Não é porque você ESTÁ HOSPEDADO EM MINHA CASA E DISSE QUE VEIO SÓ POR MINHA CAUSA que eu vou brigar porque você apareceu as duas da manhã e estava com sua ex namorada. Me desculpe por ter ficado triste e vamos dormir abraçados. Vem, docinho, eu cuido de você.
Alguns dias depois, doçurinha me convenceu de que deveríamos ir a uma “balada”. Eu tinha planejado cinemas, jantares românticos e muito sexo. Mas se doçurinha quer balada, vamos a uma! E fomos. E na festa, doçurinha estava que estava. Poxa, ele não via os amigos há tempos e tal. Ele tinha vindo a São Paulo por minha causa, mas… já que estava aqui. Então, deixa o doçurinha. Com os pés cansados (porque, diferente da sua ex “sonsa”, eu tinha três empregos e já eram cinco da manhã) me sentei e, de longe, fiquei admirando o encantamento social de doçurinha.
Mas ele não me viu. Se passaram dez minutos. Se passaram quarenta e cinco minutos. Doçurinha não dava falta por mim. De repente, uma voz dentro da minha cabeça gritou: “Tati, na boa gata, que porra você está fazendo aqui? Amanhã tu trabalha, mulher! Esse cara, porra, que que você tá fazendo com esse cara?”. E como um robô de coração triturado eu me levantei e simplesmente fui embora. Ainda deu tempo de xingar uma garota muito feia e nariguda que estava dando em cima dele. E doçurinha, entre sua mulher magoada e uma garota X, preferiu ser doce com a garota X. Porque, vocês já sabem: ele é o doçurinha. Sempre gentil com as novas amizades.
Nas madrugadas, doçurinha ficava no Messenger, nas tardes, doçurinha ficava na rua e voltava cheio de histórias a respeito de um tio gente finíssima que nunca existiu, nas manhãs, doçurinha dormia. Sua mala bagunçada, em compensação, tomava toda a minha sala e me fazia toda a companhia que ele nunca fez. Só a mala era presente. Mas doçurinha, como aquele gato do Shrek, enchia seus olhinhos de ternura e seus lábios de sofrimento. Confuso, angustiado, pobre doçurinha. Ele chorava, ele falava da mamãe, do papai, ele falava das mil opções de mundo e de apenas um corpinho pequeno para vivenciar tanta coisa. E tudo era perdoado. Até porque: “eu sofro mais do que você”, ele dizia. Pobre do doçura.
Uma vez doçurinha trouxe pra mim um doce típico de sua cidade. O licorzinho. Algo extremamente doce que implode na boca. E assim como seu doce típico, doçurinha começou a implodir em meu coração. Enjoar. Doçurinha e meu grande amor por ele começaram a morrer. Mas até hoje, vejam o poder desse homem, sinto vontade de ligar e pedir desculpas. Como pude, cansada de tanta doçura, ter começado a ser tão louca e escrota e infantil?
Mas esse texto é justamente para te pedir perdão, doçurinha. Por ter te expulsado de minha casa apenas porque você nunca esteve presente aqui, por ter ido embora de uma festa apenas porque eu estava sozinha há horas. Por ter enlouquecido em todas as vezes que você, com tanta doçura, só estava tentando me provar que eu poderia ficar louca se você fosse um imbecil. Me perdoe, eu deveria ter deixado, não é mesmo? As mocinhas doces deixam, não é mesmo? Eu deveria ter deixado você me culpar. Tadinho, queria tanto. Foi a única coisa que você, nesse tempo todo, me pediu. Que eu fosse culpada. Que eu tivesse admitido que enlouqueci antes de você me enlouquecer. E que você só fez o que fez, porque eu nunca consegui te fazer feliz, te dar paz. Coisas que você me deu o tempo todo, ininterruptamente.
Me perdoe, meu amor. Por eu não ter suportado tanta felicidade, cumplicidade, carinho, cuidado, amor e respeito. Você sempre foi e sempre será doce demais pra mim. Você disse que iria me ensinar a ver como tantas outras pessoas no mundo poderiam ser doces como você. E realmente me ensinou. Depois de você, tudo ficou adocicado demais, tudo tem mel escorrendo, açúcar pingando. Sem dúvida ficou um pouco mais nojento viver.

[Tati Bernardi]

sábado, 11 de setembro de 2010



Um dia nós percebemos que procurar, procurar, procurar, não vai dar em nada.
Percebemos que esperar ser achado por alguém que esteja procurando, procurando e procurando, também não vai dar certo. Esse alguém também vai cansar de procurar, e também vai esperar por alguém que esteja procurando, procurando e procurando, que também vai se cansar, e assim por diante.
E nós, que já desistimos fazemos o que? Já que também desistimos e estamos não esperando por alguém quem também não está mais esperando...
É bem confuso pensar assim, eu penso assim, mas um dia eu acho a solução, por que a solução eu ainda procuro, mas se a solução vier acompanhada de alguém que esteja me procurando...Muito Obrigada destino!


Por Bruna Antunes

sexta-feira, 3 de setembro de 2010


Inferno



Começou quando comi o terceiro sonho de valsa e eu nem estava com fome. Mais tarde, na segunda colherada de sopa, eu já queria vomitar, mas estava morta de fome. Conheço de longe, ou tão de perto, a tensão sexual: é a fome matadora que enjoa. É estar inflada demais pra se saciar, mas de um tamanho desproporcional para ficar saciada. Não faz sentido e é bem bobo de querer fazer. É vontade de mastigar algo, mas uma mão sai de dentro do estômago, passa pela boca e quer estapear o mundo. É desejo de porcaria e necessidade de vitamina. É preciso triturar, mas só passa líquido, quando passa. É a esquizofrenia da gana.
Dai decidi que agora não. Ah, agora não. Tudo de novo? Não. Então peguei meu celular, assim, meio ocupada, óculos e tal e mordendo o lábio inferior um pouco ressecado e, sem dó, deletei seu número de celular. Deletei as mensagens de texto também. E deletei seu nome e as fotos e a música e tudo.
E deletei você de tudo que me informa da sua vida e do lugar mais difícil de todos: do lixo do computador. Foi quando piorei. Vi seu carro parado na rua de trás e quebrei inteiro. Vi sua casa e ateei fogo. E vi você andando na rua e te atropelei. E nada adiantou. Porque você é antes de agora. Então voltei no mundo e deletei seu começo. E deletei o mundo. E deletei a explosão cósmica.
E nada adiantou, nada, porque desejo se forma em um lugar que é de onde somos também. Então eu teria que me deletar. E não adiantaria de agora, tipo: “não existo! Valendo!”. Teria que ser de antes. Mas complicou demais. E é por isso que escrevo isso da sua sala iluminada pelo sol mais feliz de todos que é o sol do dia seguinte quando ainda estamos no dia anterior. A vida que ultrapassa a gente só porque esses pequenos momentos de amor nos congelam dando uma falsa sensação de que pode ser bom pra sempre. Enquanto você dorme com uma camiseta cheirosa e é, posso dizer com certeza, a pessoa mais bonita que eu já vi numa cama desarrumada. Poucas coisas são tão claras como isso que percebo agora: você é tão bonito que eu tenho esse riso congelado mesmo quando está insuportável fazer xixi baixinho porque a droga do seu banheiro é colado com a cama sem ter uma mísera parede. Odeio as casas modernas e os casais modernos e o sexo moderno e ser moderna. Eu quero parar com essa vidinha e ter um amor pra vida. Mas e mas e mas e mas. Você é tão bonito que renova a mesmice do cinismo amoroso. Por você vale qualquer sombra na alma.
E é isso. Agora é suspirar feito besta, meus celulares e e-mails e o ar voltam a ser objetos de tortura, sempre a espera da próxima vez que você vai me pedir que morda o violão pra escutar a música dentro do cérebro. E você desafinando e meu cérebro consertando tudo dentro da minha imaginação. Não é amor porque amor é mais do que essa escravidão estética. Não é paixão porque eu só me apaixono por quem eu quero destruir e eu só quero limpar com uma palhinha de ouro seu corpo num pedestal. Não é só tesão, porque eu passaria o resto da minha existência fazendo carinho nos cachos do seu cabelo e você com 18 metros de altura parecendo um menino. Não é nada dessas coisas todas que a gente separa numa caixinha da mente pra continuar arrumando o resto das gavetas da vida. Então o quê? É isso, o xixi baixinho olhando a pessoa mais bonita que já vi numa cama desarrumada. É encantamento puro com um pouco de dor porque até a falta de dor tem muito de dor. E mais o sol e mais as formigas e mais a camiseta cheirosa e o xixi baixinho. É só o inferno.




[Tati Bernardi]